Romance indômito – Parte 1

Foi num domingo de sol que o circo Solaris havia chegado na pacata cidade de Bougainville. Mal se instalara o picadeiro e as crianças já corriam – excitadas – para todos os lados, exaltando a novidade que as tiraria do marasmo que é a vida no interior. Os mais velhos abriram as janelas, curiosos, pondo a cabeça para fora de modo a ver melhor a grande estrutura de lona e metal que, paulatinamente, se erguia no centro municipal. Foi desta forma que dona Abigail pôde contar à sua neta, Cristina, a boa nova.

– Cris, você sabe o que chegou na cidade?

– O que, vó? – perguntou a moça, distraída com um livro da escola.

– Um circo! – berrou a avó, eufórica.

Cris deu um pulo de onde estava.

– Um circo! – repetiu, abraçando forte a matriarca. Em seu íntimo, acalentava o sonho de, um dia, poder sair pelo mundo num circo famoso. Sem demora, vestiu uma roupa simples e foi conferir, por si só, o que lhe fora relatado.

Não levou muito tempo até chegar ao local da atração, onde os eficientes operários haviam montado, rapidamente, toda a estrutura. Alguns deles distribuíam os panfletos e anunciavam a venda dos ingressos.

– Senhoras e senhores, sejam todos bem-vindos ao Circo Solaris! Nossos ingressos podem ser adquiridos logo ali, no Stand de vendas…

No quadro de avisos, afixado perto da entrada principal, Cris observou que um folheto, mais chamativo que os demais, convocava os jovens interessados na vida circense a comparecerem na seleção, que ocorreria segunda-feira – no dia seguinte.

“Será que valia a pena tentar?”, refletiu, dividida entre o arrebatamento e o receio.

Resolvera adquirir dois ingressos, um para si e outro para a avó, para assistirem ao espetáculo de inauguração. Correu para casa, convidando-a a apressar-se.

– Rápido, vó, senão vamos perder o show!

Após se arrumarem com muito esmero, afinal, um circo é sempre algo inédito em cidadezinhas, foram as duas, Cris e Abigail, de braços dados até o ponto indicado, onde sentaram-se na melhor cadeira que puderam encontrar – nas fileiras frontais, cuja vista era privilegiada. A arquibancada estava completamente cheia, com apenas algumas poltronas desocupadas. Parecia até que o vilarejo inteiro havia comparecido.

Assim que o apresentador deu boas vindas ao público, os artistas foram, um a um, exibindo as suas performances. Em cada uma delas, os espectadores mantinham-se encantados, assombrados pelas coisas incríveis que eram expostas ali. Mas não havia, para Cris, nada mais magnífico que os acrobatas, em especial Ava Shuester, anunciada como estrela do show.

– Vó, a senhora vai ver agora a acrobata principal do circo! – Sussurrou Cris, no ouvido da avó. Não podia conter a animação.

A mulher, além de linda, era extremamente talentosa e fazia as acrobacias com perfeição e segurança.

Com a boca entreaberta, Cris acompanhava, tal qual uma admiradora embasbacada, todos os movimentos da moça. Ao fim, a artista agradecera pela salva de palmas. Acenou com a mão direita para as pessoas e, abruptamente, virou-se para onde Cristina estava, mantendo-se estática naquela direção. Por alguns longos segundos, os olhos de ambas se conectaram entre si. Voltando à “realidade”, Ava ignorou a adorável espectadora e correu rumo ao interior do picadeiro, escondendo-se, majestosamente, por trás das cortinas vermelho-sangue.

Depois de concluído o espetáculo e já na rua de sua residência, Abigail puxou sua neta pelo braço e disse:

– Você tem que ir lá se inscrever na seleção! Até a grande estrela do circo notou sua presença…

Cris arregalou os olhos, surpresa com a lucidez da avó – e enrubescida com sua observação precisa. Pelo visto, não fora só impressão sua: a estrela do Solaris havia realmente lhe percebido.

– Como a senhora sabe que haverá seleção?

– Oh, filha, a fofoca galopa por aqui! – Abigail deu uma gargalhada gostosa. – Vá, vá, não perca tempo comigo, vá ver o que é preciso para se candidatar!

– Mas, vó, não posso deixar a senhora sozinha! – Constatou Cris, preocupada com a saúde da idosa.

– Não se preocupe comigo, querida, eu já estou na prorrogação. Você é que tem muito o que viver… vai sem medo! – Desgrudou-se da neta com um imenso sorriso, refazendo o trajeto habitual com mais duas senhoras, grandes amigas suas, as quais encontrara na rota para casa.

……………….

Às 4h da manhã, antes de o galo cantar e não havendo um pé de gente sequer nas ruas, Cris já se destinava ao “guichê” de inscrição para a triagem de novos artistas circenses. Como era a primeira da fila, não demorou a ser chamada.

– Documentos, por favor. – Pediu mecanicamente o funcionário, um anão enfezado – que Cris descobriria posteriormente ser muito bondoso, embora não aparentasse –, conhecido jocosamente entre os colegas pelo apelido de “Pezinho”. – Está tudo certo. A mocinha pode se dirigir à entrada principal. É acrobacia mesmo que quer?

– Sim, sim. – confirmou a jovem, ansiosa pelo que surgiria a seguir.

Apressou os passos até a abertura indicada pelo homem, encontrando um longo corredor à sua espera. Ignorou a falta de ar, ocasionada pela grande ansiedade que sentia, e começou a trotar, a fim de chegar mais rápido ao seu destino.

“Quem deveria ser o instrutor?”.

Distraída ao adentrar na saleta, trombou com um corpo rijo e esguio, que a derrubou como se fosse um mero pino de boliche.

Imediatamente, uma mão enfaixada e cheia de talco se esticara, convidando-a a se reerguer. Aceitando a generosa oferta, Cris agarrou a mão amiga, ficando face a face com a pessoa que mais desejava conhecer: a grande estrela acrobata, Ava Shuester.

Ela era, pessoalmente, muito mais cativante. Os canhões de luz iluminavam sua pele bronzeada, revelando o corpo atlético da artista, minuciosamente desenhado pelo collant que usava. Os cabelos negros, medianos e revoltos, emolduravam os seus marcantes traços faciais, evidenciando seu ar enigmático e arredio. Cris era capaz de sentir o hálito dela, passando pela fresta entre os lábios carnudos.

– Você é iniciante? – Perguntou num tom indecifrável, perscrutando a garota da cabeça aos pés.

– S-sim! – balbuciou Cris, ainda tonta com o tombo que levara. – Desculpe…

– Foi o que pensei. – Ava soltou a mão da moça, virando-lhe rapidamente as costas. Enquanto colocava mais talco nas mãos, olhava de esguelha os passos da caloura. “É a menina da arquibancada. ”, lembrou-se, sentindo um misto de angústia e prazer.

Tendo presenciado a cena, uma das trapezistas intermediárias, que ali ensaiava para os próximos shows, segurou Cris pela gola da blusa.

– Acha mesmo que Ava vai te levantar todas as vezes que você cair? – Falou em tom de deboche, rindo com outra colega. – Bem-vinda ao inferno, novata!

E agora já era sabido: a exigente e ilustre estrela circense treinaria a sua maior fã.

 

Continua…

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