Jacques Bouchet esperava inquietamente por Ava Shuester em sua sala particular. Com certeza, faria ela desistir daquele caso absurdo com uma interiorana, ou a deixaria na sarjeta, com a reputação em frangalhos.
A acrobata não demorou a chegar. Bateu na porta e foi, de pronto, convidada.
– O que quer de mim, Jacques? – inquiriu sem emoção, porém com leve desconfiança.
– Eu? – replicou Bouchet, em tom debochado. – Não quero nada muito complicado… Quero apenas evitar que meu circo vire um antro de depravação…
– Do que está falando?
– Eu sei de tudo, Schuester. Sei que você está de caso com a novata.
Ava perdeu o chão por alguns segundos. “Como ele poderia ter descoberto?”.
Vendo-a em silêncio mortal, Bouchet atacou:
– Já não basta ter desvirtuado a minha filha e ter provocado a morte dela?!
– Cale-se! Não ouse tocar no nome de Emily! – Ela o interrompeu bruscamente. O sangue fervendo nas veias. Todo o passado de Ava parecia ter sido arremessado violentamente sobre ela. – Nós nos amávamos, Jacques, mas VOCÊ interrompeu a vida de sua filha, quando decidiu impedir nossa união!
– Eu não poderia permitir que você enfiasse essas perversões na cabeça dela! – bufou Jacques, com os grandes olhos saltados. – Sim, eu deserdei Emily e ameacei jogar você no olho da rua, caso ela insistisse nesta aberração homossexual! O problema é que a lavagem cerebral havia sido feita. Emily não suportou que você pudesse perder a única coisa na qual era boa: o circo! – Ele esboçou um sorriso jocoso e continuou. – Foi aí que ela saiu de casa feito uma louca, para te avisar dos meus planos. E o que aconteceu? Ela morreu! Por sua culpa!
A acrobata cedeu ao choro, engolindo os soluços que sacudiam seu peito. Jacques, por sua vez, encontrava-se avermelhado, com olhos sem lágrimas, impiedosamente voltados para a sua interlocutora. O seu plano estava funcionando.
Após alguns instantes, Ava conteve a emoção o quanto pôde e disse:
– O seu preconceito, Jacques, matou o meu primeiro amor!
Jacques soltou um suspiro consternado. “Melhor morta que com outra mulher”, ponderava consigo mesmo a respeito da própria filha. Sim, a morte de Emily fora uma grande tragédia, mas agora tinha a chance de prosperar, com uma artista circense talentosa sob seu comando, e sua ambição era o que valia naquele momento – oportunidade que ele jamais deixaria passar.
Adotando uma nova estratégia, com medo de perder “o peixe”, Jacques fingiu desconforto pelo tema da discussão. Contornou a mesa que os separava, encarando Ava face a face.
– Vamos mudar de assunto, antes que eu perca a paciência. – Ameaçou, logo depois amenizando a expressão facial, como se demonstrasse mais compreensão do que raiva. – Quero fazer um acordo com você…
Ava o fitou com amargura. “Pobre Emily, não merecia o pai que tinha. ”
Bouchet prosseguiu, seguido pela mudez da moça:
– Você pode desistir do seu namorico com a matuta e ser minha artista com exclusividade OU pode dar adeus à sua vida artística e reputação. Qual você escolhe? Vou lhe dar o dia de hoje. Pense bem…
Com a mão, Jacques apontou a saída, deliciando-se com a situação. Desolada, Ava retirou-se da sala, indo a pé até uma clareira mais afastada do picadeiro, a fim de pôr os pensamentos em ordem.
“Seus dias de escassez estão contados, Bouchet”, Jacques pensou alto. No entanto, a pungente possibilidade de que Ava pudesse optar por seu romance – e não pela carreira circense – o fez tremer nas bases. “Ela não se atreveria…”, duvidou, na solidão do seu escritório.
Encostado à parede do lado externo, encontrava-se Pezinho, o qual, tendo ouvido a conversa inteira e já ciente da falta de caráter do patrão, resolveu unir esforços com os outros funcionários, para dar um jeito no abominável Jacques Bouchet.
……….
Cris estava atrasada para o treino naquele dia, pois havia dormido excessivamente bem – ao lado de sua amada. “Ava já deve estar no Solaris”, avaliou a jovem, levantando-se da cama num pulo. Vestiu-se rapidamente e correu para o seu trabalho.
Ao chegar, procurou por Ava em todos os cantos, sem encontrá-la. Um estranho, por fim, informara que Ava havia tido uma reunião com Jacques instantes atrás. A jovem acrobata voou até a sala do dono do circo, onde ele já a aguardava.
– Você é Cristina, a iniciante?
– Sim, sou eu. – respondeu, apreensiva. – Ava está por aí?
– Não, mas eu gostaria de conversar com você. Será que poderia? – indagou, educadamente, algo raro para seu temperamento.
Apontando uma cadeira, fez a moça sentar-se.
– Quero tratar algo com você, Cristina. – Bouchet enfiou um charuto gigantesco na boca, prosseguindo com o seu discurso. – Vamos aos fatos: eu sei da sua relação com Ava Shuester.
Cris engoliu em seco. Seus pensamentos se concentraram em Ava.
– A senhorita sabe que Shuester tem um grande futuro pela frente, não sabe?
A menina assentiu que sim, tentando acompanhar o raciocínio do seu interlocutor.
– Então, provavelmente sabe que não tolero escândalos no meu circo, e que o envolvimento de vocês duas me enoja profundamente, sim?
– O que você quer? – Cris o cortou, agoniada pelo monólogo irritante.
O homem forjou uma expressão compassiva. Um autêntico lobo em pele de cordeiro.
– Quero que abandone Ava, deixe-a ter uma chance naquilo que ela mais ama. – Pediu, fingindo importar-se com a situação.
Apesar da repulsa de Cris, havia fundamento no que ele dizia. Nunca havia se sentido tão feliz, embora soubesse que, se descoberto, o romance das duas implicava na renúncia ao sonho de Ava – de permanecer no circo –, e isso Cris não podia permitir. Se tivesse de abdicar da relação para que Ava fosse feliz, ela o faria.
– Muito bem. Estou saindo do Solaris. E da vida de Ava.
Bouchet abriu um sorriso de triunfo.
– Posso ver que você quer bem à sua namoradinha.
– Me prometa que não vai prejudicá-la! – Exigiu Cris, levantando-se da cadeira.
– Você tem a minha palavra, minha cara. – Assegurou Jacques, simulando solidariedade.
Cris saiu da sala – e do circo – sem se despedir de ninguém. Envolta em devaneios, correu para casa e trancou-se na singela residência que lhe pertencia – sua única herança. Estava convencida: deveria fugir para bem distante de Bougainville antes do fim do dia. Pelo menos, permaneceria longe dali por algum tempo.
Sentiu uma dor fina no coração quando pensou em Ava e no quanto a amava.
“É o único jeito, Cris.”
Preparando a mochila, permitiu, finalmente, que as lágrimas molhassem sua face.
“É o único jeito…”.
Continua…
Já leu?